Introdução
A @LuciaValle cantou a pedra de uma matéria na Folha (aqui e aqui) sobre um Professor de Matemática, de Santos, que aplicou a seguinte prova:
"1) Zaroio tem um fuzil AK-47 com carregador de 80 balas. Em cada rajada ele gasta 13 balas. Quantas rajadas poderá disparar?
2) Biroska comprou 10 gramas de coca pura que misturou com bicarbonato na proporção de 4 partes de pó para 6 de bicarbonato. A seguir, vendeu 6 gramas desta mistura ao Cascudo por R$ 150 e 16 gramas ao Chinfra por R$ 40 a grama. Então:
a) Quem é que comprou mais barato? Cascudo ou Chinfra?
b) Quantos gramas de mistura o Biroska preparou?
c) Quanto de cocaína contém essa mistura?
3) Jamanta comprou 200 gramas de heroína que pretende revender com um lucro de 20% graças ao "batismo" com pó de giz. Qual é a quantidade de giz que ele terá que colocar?
4) Rojão é cafetão na Praça Mauá e tem 3 prostitutas que trabalham para ele. Cada uma cobra R$ 35, dos quais R$ 20 são entregues a Rojão. Quantos clientes terá que atender cada prostituta para poder comprar a sua dose diária de crack no valor de R$ 150?
5) Chaveta recebe R$ 500 por cada BMW roubado, R$ 125 por carro japonês e R$ 250 por 4X4. Como já puxou 2 BMW e 3 4X4, quantos carros japoneses terá que roubar para receber R$ 2.000?
6) Pipoco está na prisão por assassinato pelo qual recebeu o equivalente a R$ 5.000. A mulher dele gasta R$ 50,00 por mês. Quanto dinheiro vai restar quando Pipoco sair da prisão daqui a 4 anos? "
Segundo a mesma matéria o Professor foi afastado de sala de aula e (grifo meu) será investigado pelo crime de apologia ao crime.
Ao contrário da Secretaria de Educação, a Folha ouviu a versão do Professor.
Sobre a Presunção de Inocência
Sem entrar, por hora, no mérito se as questões são adequadas ou não para serem trabalhadas com alunos de ensino médio penso que a Secretaria de Educação, que supostamente suspendeu o professor, viola dois preceitos constitucionais:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Logo, se eu fosse este professor, já trataria de começar a processar os responsáveis pela sua suspensão sem que o mesmo fosse ouvido em qualquer procedimento investigativo interno. Ele foi penalizado e exposto ao constragimento público sem ter sido ao menos investigado. Barbárie Jurídica, EMHO!
[Atualização]
Como eu suspeitava, o Professor não cometeu nenhum tipo de crime ou mal-feito... a Justiça entendeu que não há crime (ou apologia ao crime) em se contextualizar questões usando o Mundo Cão:
"Em seu despacho ao juiz, o promotor do Juizado Especial Criminal da Comarca de Santos, Éuver Rolim, afirma que para que configurasse apologia ao crime, o professor teria que desejar a prática do crime, o que não ocorreu."
[/Atualização]
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
Pode-se discordar, pedagogicamente, da adequação das questões, mas não se pode determinar as opções didático-metodológicas do Professor nem como o Professor fará o seu trabalho.
Antes que você me arremece pedras, leia atentamente as questões e me diga onde há um juízo de valor favorável ao crime de tráfico ou prostituição?
Quando um jornal veicula um crime estaria ele fazendo apologia ao crime? Obviamente que não, assim como o Professor em questão não está fazendo qualquer tipo de apologia ao crime!
Sobre a Adequação Pedagógica
Se algum procedimento, estratégia, ferramenta, opção pedagógica é adequada ou não à um certo contexto educacional é questão para ser debatida profissionalmente, nos espaços adequados da Escola para tais discussões.
Não é educativo, construtivo e nem ético, levar para fora do espaço escolar, questões que devem ser debatidas por todos os interessados no processo educativo (alunos, pais e Professores). No meu modo de ver, a família encaminhou mal o problema que ela enxergou na prova. E a Secretaria de Educação agiu, no mínimo, com atropelo. Toda denúncia deve ser investigada, apurada e, na constatação de mal-feitos, os culpados devem ser punidos.
Repare que a apuração deve preceder a punição, em qualquer espaço minimamente civilizado, como deve ser a Escola!
Agora, entremos na discussão da adequação (ou não) das questões propostas pelo Professor de Matemática. Qual a diferença pedagógica nos dois enunciados que se seguem:
a) Um dispositivo A funciona com 80 pontos. Se a cada uso do mesmo 13 pontos são usados, quantas vezes o dispositivo poderá ser usado?
b) Zaroio tem um fuzil AK-47 com carregador de 80 balas. Em cada rajada ele gasta 13 balas. Quantas rajadas poderá disparar?
Nos dois casos é necessário abstrair o que nao é relevante para a resolução do problema, identificar as informações relevantes e então raciocinar, matematicamente, para se resolver o problema.
No segundo caso pode-se usar, explicitamente, o "contexto absurdo" para se reforçar que o pensamento matemático é útil quando ele pode generalizar um dado problema abstraindo-se dele todo o contexto original. Poder-se-ia ainda, facultativamente, se usar o "contexto absurdo" para se problematizar a vida real! Pense Paulo Freire, alargue sua mente!
Veja, você pode discordar da adequação das questões, pode discordar se o seu uso é, necessariamente, uma boa ou má contextualização do conteúdo de matemática à vida dos aprendentes. Mas você não pode, determinar o que é crime e o que o Professor pode ou não fazer no seu trabalho docente! É a lei meu caro Watson!
Você pode convencê-lo que aquelas questões podem trazer mais riscos que benefícios aos alunos. Mas você não pode julgá-lo antes de ouví-lo.
Pois Educação é uma tarefa naturalmente hercúlea. Diaologar e fazer críticas construtivas ajudam muito mais do que satanizar, previamente, o Professor
PS: Troque o Professor por médico, jornalista, etc. Eu teria a mesma postura. Não estou sendo corporativista, ainda que, ser corporativista no magistério, é nossa (professores) melhor opção.
3 comments
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Comment from: Bruno P. Mattiazzo
Muito bom o texto. Com certeza abriu a minha cabeça sobre o tema. Sem falar que NÓS professores precisamos nos unir mais e trabalhar juntos. Chega de criticar uns aos outros.
Comment from: admin
Opa Bruno,
Como disse, podemos até discordar, mas o professor tem o direito de fazer o seu trabalho do modo que acredita, desde que não viole a lei. E foi caso, ele não violou a lei.
Nosso trabalho já é bem duro para sermos atrapalhados por colegas.
abs
Comment from: JOSÉ VERGILIO PACCOLA
Muito bom o texto. Elucidativo sobre a liberdade de cátedra que não pode ser confundida com liberdade de expressão.